O “quem sou eu” como muleta

Giuliano
3 min readSep 24, 2021

Ramana Maharshi nunca pregou que as pessoas usassem a pergunta “quem sou eu?” como uma muleta. Há os que entram em contato com esses ensinamentos, e entendem que essa pergunta, feita com a devida pausa dramática, pode cancelar qualquer complexidade. O que é uma bobagem. Para usar essa abordagem é preciso ter alguma sutileza.

Uma pergunta formulada com palavras tem letras que vem antes das outras, e tem um ponto em que a pergunta não existia, ela era inexistente e foi produzida a partir de uma causa material. Antes de o cara saber que essa pergunta tivesse qualquer uso, ela não era usada. O fato é que a pergunta, em qualquer de suas modalidades, surge e desaparece materialmente em seu substrato. E desaparece em sono profundo.

O mais importante aqui é entender as condições de formulação de uma questão assim. Muita gente a usa como pergunta retórica, para afirmar que não há um “eu” sólido, e portanto, a complexidade não tem substrato, de maneira que ficamos livres dos vínculos causais.

Ou seja, o camarada, já sabe o que quer, e quer provar seu ponto dentro de uma discussão: alguém lhe apresenta uma complexidade de fato, e ele se sai com, mas “para quem aparece essa complexidade?”. São jogos obviamente infantis, mas que encantam as pessoas iniciantes e deslocam a região de aplicação do questionamento de si para uma disputa (jalpa) eivada pela falácia de âtmâshraya (autorreferência viciosa).

Quando se pergunta “quem sou eu?”, e não se trata de uma pergunta retórica, o que se quer dizer é que “eu” é um “siddhi”, ou seja, está cumprido, está dado, está completo no presente, como a fumaça, e o “quem” é o “sadhya”, ou seja, aquele objeto que está oculto, o fogo que ainda está para ser adquirido pela consciência. Se a identidade entre “quem” e “eu” já fosse dada, seria uma afirmação, não uma questão.

A pergunta surge não como a cor azul surge num vaso, ou como as orelhas estão relacionadas com o coelho — em ambos os casos a objetividade (vishayatâ) do objeto (vishaya) se dá como contrapositora (pratyogi) ao lócus do conhecimento (jñâna), ao passo que o conhecimento mesmo — bem como o desejo de conhecer (îcchâ) e o impulso de ação (prayatna) — se dão como qualidades (dharma) em um substrato (dharmi) que é também o lócus da subjetividade (vishayitâ) do sujeito (vishayî) da pergunta. Ou seja é uma contraposição intermediada — ao menos como “produto” com anterior não-existência — por meio de um circunstanciador (avacchedaka) do substrato (âtman).

A percepção de que o “quem” ao qual a pergunta se refere, é o mesmo “eu” que é substrato material ou ontológico da questão em forma de evento psicológico, é uma percepção do “lócus” do conhecimento, que permanece constante antes da pergunta, nos seus diferentes instantes ou fonemas, no fato de ser substrato de significado, e depois da pergunta. E o contexto ou a intenção é a de “asmitâ-samadhî”, a transmutação da egoidade em objeto de concentração invariável.

Essa percepção portanto se dá como unidade entre aquilo que está além da pergunta, pois é seu substrato, e o significado da pergunta, que é seu objeto. Semelhante ao que se dá com uma chama que queima todo o pavio e desaparece. É um movimento de retroatividade ontológica.

Contudo, se a natureza dessa cognição se dá por conexão (samyoga) intimíssima e singular entre a mente atômica, no centro do círculo infinito, e o Âtman, o círculo infinito a partir do qual os raios de movimento da mente se desenvolvem, ela não cancela a natureza atômica da mente, nem a natureza infinita do Âtman para os outros fins. Portanto, não deve ser usada como muleta para resolver questões racionais complexas relativas a coisas de dimensão intermediária (nem atômicas, nem infinitas), nem como questão retórica, nem como princípio moral, nem como argumento ou “tarka”.

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Giuliano

Professor, estudante, escritor, tradutor. Escrevendo sobre autoconhecimento, cultura e temas de filosofia hindu (yoga, sâmkhya, nyâya).